sábado, 3 de abril de 2010

O piano que ameniza as 'dores da alma'

Créditos: Elizabeth Soares
O pianista Jaime das Neves toca para pacientes na fila de espera da Santa Casa de Santos



Um pequeno palco, coberto por um tapete vermelho que, apesar da simplicidade, indica a nobreza do lugar. Sobre ele, um piano à espera de quem o tocará, dali a instantes. Os 40 lugares são insuficientes para acomodar o público. Muitos ficam em pé, encostados nas paredes ou à beira do palco.

O pianista chega apressado, mas nem por isso deixa de cumprimentar a plateia. Como ritual de preparação, veste a gravata com desenhos de notas musicais. Esta não é a descrição da área vip de um recital, mas da sala de espera de um laboratório, na Santa Casa de Santos.

Jaime das Neves, músico há 41 anos, desenvolve um trabalho diferente dos colegas de profissão. Há nove anos, ele toca piano durante duas horas nas manhãs de terças, quartas e quintas-feiras, para pacientes que aguardam atendimento no hospital. Um público incomum, ansioso por resultados que descartem más notícias de seus médicos ou que os libertem de tratamentos, muitas vezes longos.

Aos 62 anos, Neves disputa os ouvidos de seu público com aparelhos de telefone, ventiladores, sinais sonoros e gritos de atendentes. Segundo ele, o estímulo vem das demonstrações de carinho que o público-paciente lhe transmite, por meio de frases simples como: "Que Deus abençoe suas mãos!".

A iniciativa partiu do médico João Carlos Maluza. Inspirado por modelos norte-americanos de terapias complementares que envolvem música, Maluza, em parceria com o hospital, convidou o pianista, que prontamente aceitou o desafio.

Coração de Maria

A empregada doméstica Maria José dos Santos diz que as melodias trazem de volta a lembrança dos poucos momentos felizes que viveu ao longo de seus 63 anos. Mas estas lembranças são tão raras que se misturam às tristes. Maria José conta que, apesar de amar piano, nunca teve oportunidade de se aproximar dele.

A empregada doméstica ficou viúva cedo, de um marido alcoólatra agressivo. Criou sozinha os três filhos. Um deles faleceu há cinco anos, atropelado na rodovia Piaçaguera-Guarujá.

O coração de Maria não agüentou o sofrimento. Ela precisou ser submetida à cirurgia para colocação de marca-passo, dois anos depois da morte do filho.

Ouvir o pianista é parte da rotina de Maria na Santa Casa, junto com os exames que se tornaram frequentes após a cirurgia. Maria, como tantas outras, sente-se constrangida em pedir ao pianista que toque sua música predileta, 'Concerto para um verão', composta por Manoel Lindo Pleno, que ficou conhecida na voz de Altemar Dutra.

A empregada doméstica se despede, cabisbaixa, enquanto o pianista toca uma música cuja letra, muito sugestiva, é cantarolada por alguns pacientes: "... onde você estiver, não se esqueça de mim...".

Os pacientes não são os únicos a sofrer dos males do corpo. O músico, que espalha sorrisos e alegria pela sala, também tem suas dores. Enquanto toca a 9.ª Sinfonia de Beethoven, Jaime das Neves conta que padece diariamente de enxaqueca, aliviada somente quando toca piano.

Após quatro décadas de profissão, o músico tem outras atividades como ganha-pão. Neves dá aulas de teclado no Teatro Municipal de Santos.

Quando questionado se não se sente cansado, pela natureza do trabalho que desenvolve, responde: "A música é o ar que eu respiro, sem ela seria impossível sobreviver. Sendo assim, farei de tudo para, com ela, melhorar a vida das pessoas que passam pelo meu caminho".

O serviço envolve outro pianista, Ubiratan Victoriano, que alterna com Jaime das Neves os dias de trabalho, às segundas, sextas e sábados. Os recitais são gratuitos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário